Uma pequena mudança – uma única mutação – parece ter impulsionado a capacidade do vírus Zika moderno de atacar células cerebrais fetais, alimentando a onda de problemas de microcefalia que recentemente varreu as Américas. As descobertas foram relatadas em setembro, na revista Science.

Pesquisadores na China descobriram que uma única troca de aminoácidos – de serina para asparagina – em uma proteína estrutural do vírus Zika ocorreu alguns meses antes do patógeno ter aparecido pela primeira vez na Polinésia Francesa em 2013.

Os resultados da equipe podem começar a responder uma importante pergunta sobre a epidemia de Zika: por que a microcefalia e outras anormalidades cerebrais relacionadas ao Zika foram observadas em áreas atingidas por surtos nos últimos anos, mas não nas décadas seguintes à descoberta do vírus em 1947? Segundo uma teoria, a conexão entre Zika e microcefalia passou despercebida anteriormente porque havia poucos casos que permitissem enxergar essa ligação. Outra teoria relevante diz que algo mudou na forma moderna do vírus, permitindo que ele infectasse células cerebrais de modo mais eficiente do que seus antecessores. O novo trabalho sugere que a segunda é verdade. “Este é um estudo muito bom e dá uma explicação plausível, embasada cientificamente”, diz Anthony Fauci, diretor do Instituto Nacional de Alergias e Doenças Infecciosas do Instituto Nacional de Saúde (NIH, na sigla em inglês) dos EUA. Ele acrescenta que os resultados serão reforçados se outros grupos replicarem-nos.

Nem todas as mudanças em um patógeno são significativas. Vírus sofrem mutações continuamente à medida em que se replicam, o que tornou difícil identificar mudanças funcionalmente importantes. Contudo, a equipe chinesa de pesquisa catalogou as diferenças entre o Zika moderno e um ancestral isolado de um paciente do Camboja em 2010. Depois, utilizaram um software de modelagem de computador que sugeriu que uma única mutação de aminoácido – chamada substituição S139N – provavelmente foi importante.

Os pesquisadores testaram essa ideia infectando camundongos recém-nascidos (os quais têm um desenvolvimento semelhante ao de um feto humano) com diferentes versões do Zika feitas em laboratório. Descobriram que o vírus com a mutação S139N era o que causava o maior dano às células cerebrais do animal. Em seguida, os cientistas confirmaram suas descobertas utilizando genética reversa – trocando uma única mutação substituição S139N por um vírus Zika de outra forma idêntico. A equipe infectou camundongos recém-nascidos com uma das duas versões do Zika, e descobriram que a versão sem S139N era menos prejudicial aos animais. Também replicaram, em laboratório, alguns dos seus testes em células-tronco neurais humanas, e observaram que o vírus Zika moderno matava mais células do que seu ancestral.

Como exatamente a mutação S139N fortalece a habilidade do Zika de infectar células cerebrais permanece um mistério. Devido ao fato de a mutação estar dentro de uma proteína que ajuda a formar a estrutura do vírus, pode ser algo associado a ligações – talvez permita que o vírus se ligue a células com maior afinidade, diz Fauci.

Mesmo com o novo achado, os pesquisadores chineses ainda admitem que seu estudo provavelmente não seja a palavra final sobre o que causa a microcefalia ligada ao Zika. Descobriram que a troca S139N causou os casos clínicos mais severos, mas também observaram que outros ramos do vírus Zika moderno sem a mutação (alguns com ocorrência na natureza, outros criados em laboratório) também poderiam causar microcefalia leve e outros danos celulares aos camundongos. “Além dos fatores do hospedeiro [como baixa imunidade ao vírus em comunidades afetadas], definitivamente há algumas outras proteínas ou aminoácidos virais os quais podem contribuir para a patogênese complexa da microcefalia – independente ou sinergicamente”, diz Cheng-Feng Qin, principal autor do estudo e chefe do Departamento de Virologia do Instituto de Microbiologia e Epidemiologia de Pequim.

“Nossa estudo identificou uma determinante genética única que se conecta com microcefalia severa”, acrescenta Qin. O trabalho também pode ter outras implicações para o controle de Zika. Qin diz que experimentos subsequentes para testar a eficiência de vacinas ou drogas antivirais deveriam usar cepas contemporâneas com a mutação S139N. Qin ainda adverte: qualquer futura vacina para Zika que inclua uma forma viva, porém paralisada do vírus – como uma atualmente em desenvolvimento no NIH – não deveria conter essa mutação danosa, mesmo que o vírus seja atenuado (alterado para se tornar menos virulento). O NIH diz que sua candidata a vacina – a qual contém a mutação S139N – não prejudicou tecido cerebral em estudos anteriores com macacos. Stephen Whitehead, cientista associado sênior do NIH que liderou esses experimentos, diz que as novas descobertas (as quais envolveram camundongos com vírus administrado em seus cérebros) podem não refletir o modo como primatas responderiam ao vírus injetado em sua pele.

Ainda assim, remover mutações potencialmente problemáticas é algo que, segundo Fauci, pode valer a pena considerar. “Se temos algo com uma mutação neurotrófica (relacionada ao sistema nervoso) e estamos fazendo vacina viva e atenuada”, ele explica, “faria sentido tirar essa mutação de lá.”

Fonte: Scientific American Brasil