Pesquisadoras brasileiras lançaram neste ano de 2021 a rede Mulheres na Zoologia, um grupo que tem a proposta de combater a disparidade de gênero percebida no meio científico. A rede soma-se a outros grupos que já vêm levantando dados e apontando padrões sociais sobre o tema.

O CRBio-07 conversou com a Bióloga Priscila Camelier (CRBio 59.040/08-D), mestre e doutora em Zoologia e integrante do Mulheres na Zoologia. Ela é professora da Universidade Federal da Bahia e coordenadora do Museu de História Natural da Bahia e também integra os grupos IctioMulheres e Rede Kunhã Asé, ambos de apoio à mulher em áreas da ciência.

Priscila falou sobre as situações que levam ao afastamento de muitas mulheres da carreira acadêmica. Falou sobre o assédio que é recorrente na Zoologia, especialmente em campo. Comentou sobre o cenário paradoxal, em que muitas mulheres ingressam nos estudos da Biologia e posteriormente da Zoologia, mas ao longo da carreira poucas ocupam posições de poder, um cenário que se repete em várias áreas da ciência. As estatísticas comprovam esta fala: mulheres representam apenas 14% da Academia Brasileira de Ciências, por exemplo.

A entrevistada traz também, além das inquietações sobre as situações vividas no dia a dia, algumas ações que os grupos de apoio têm realizado. Acompanhe:

CRBio-07: A criação do grupo “Mulheres na Zoologia” levanta um debate sobre a disparidade de gênero que existe nessa área. Por que esse debate era necessário?

Priscila: Não apenas no Brasil, mas em todo o mundo existem menos mulheres fazendo ciência do que homens, isso é uma estatística já apresentada pela Unesco. Entre os cientistas, menos de 30% são mulheres. Queríamos entender o porquê. Seria porque as meninas não se interessam pela formação nas ciências? Isso já vimos que não é verdade, pois a quantidade de mulheres que ingressam nas universidades nas diversas ciências é grande. O que ocorre de fato é um fenômeno chamado de “vazamento de duto”, o abandono da carreira acadêmica pelas mulheres devido a fatores externos à sua vontade. É como se fossem vários ‘buracos’ pelos quais vamos desistindo da carreira acadêmica e, com isso, perdemos diversas cientistas em potencial no caminho. São fatores como a imposição social de que a mulher tem a maior dificuldade de conciliar a vida profissional com a pessoal. Tem a ver com assédios dos mais variados possíveis, não apenas sexual, mas moral e diversas formas de discriminação, que também provocam o sentimento de não pertencimento. Inclusive aqueles comentários que as pessoas costumam dizer que ‘não falam por mal’ perpetuam a visão de diminuição do potencial da mulher. Existe também a falta de modelos femininos nas posições de maior prestígio. São aspectos que fazem com que as mulheres não cheguem até os patamares mais altos. Se existe uma realidade a ser mudada, precisávamos levantar o debate e então e executar ações.

CRBio-07: Um assunto que os grupos se propõem a debater é o assédio a mulheres, também como mais um obstáculo a ser combatido, não é?

Priscila: Com certeza. Em campo então, chega a ser assustador. Mesmo com o calor, o nosso conforto é limitado pelo ponto em que estamos cobertas o suficiente para não virarmos uma vitrine. Quando entramos na água, nossa roupa cola no corpo e preocupa a forma como somos olhadas. Em trabalhos em embarcação é preocupante também a quantidade de relatos de assédio, inclusive tem um levantamento do blog Bate Papo com Netuno que revela esse absurdo. Se me perguntarem se eu, como mulher, dou conta de um trabalho em campo apenas com outras mulheres entre as pesquisadoras, tenho certeza que sim. Mas não fazemos isso justamente pelo medo da sociedade, por sermos mulheres andando sozinhas em campo.

 

CRBio-07: Como surgiu o Mulheres na Zoologia e os outros grupos de apoio à mulher na ciência?

Priscila: Posso falar mais pelos grupos que participo, mas em geral o surgimento destas redes de apoio vem da mesma origem: a indignação e a inquietação compartilhadas de mulheres diante de situações comuns. Uma começa a falar com a outra sobre acontecimentos vividos ou presenciados e a perceber que não são casos isolados. A Rede Mulheres na Zoologia surgiu oficialmente neste ano de 2021. Vários grupos já haviam surgido nos últimos anos, como o Mulheres na Entomologia, o Herpetologia Segundo as Herpetólogas, o IctioMulheres, por exemplo. Mas pensávamos em um grupo para ampliar nossa voz em questões comuns, então em 2020 já havia acontecido o Simpósio “Por mais mulheres na Zoologia” e em 2021 saiu um artigo bem controverso na revista Nature que, basicamente, falava que as mulheres quando orientadas por pesquisadoras mulheres teriam impacto negativo em suas pesquisas, levando a entender -– apesar de retratação posterior -– que as acadêmicas teriam mais sucesso ao buscar orientadores homens. E aí nos reunimos para escrever uma resposta de Zoólogas brasileiras, dando início ali ao grupo. Eu já integrava o IctioMulheres, que surgiu em 2015. Nesse grupo temos obtido dados, afinal não podemos ficar debatendo apenas opiniões, e com dados a gente pode de fato mostrar as situações que estão ocorrendo. E esses dados têm comprovado o cenário de disparidade de gênero e a desvalorização da mulher no nosso campo de atuação.

CRBio-07: Que tipo de ações podem ser realizadas para que se mude então este cenário?

Priscila: Temos que atuar em diversos passos. O primeiro deles é reconhecer que existe uma série de fatores que geram a disparidade. Precisamos falar sobre o assunto, levantar o debate, pois isso conscientiza, chama a atenção e gera resultados. Precisamos lembrar que modelos são inspiradores, por isso precisamos estimular que mulheres tenham espaços para serem as palestrantes, coordenem projetos e assumam as posições de liderança em suas áreas de atuação, inspirando as novas gerações. E precisamos discutir e executar ações concretas e projetos para diminuir a desigualdade de gênero. As redes de apoio são importantes para isso.

CRBio-07: Destacaria algum exemplo de ação em andamento?

Priscila: Existem diversas ações dos diversos grupos, mas vou dar dois exemplos. Um mais focado em conscientizar nossos profissionais de que existe uma cultura a ser mudada e outro focado em incentivar meninas ao início da carreira científica.

O primeiro exemplo vem da IctioMulheres, em que nos propusemos a obter dados. Levantamos que nos encontros da Sociedade Brasileira de Ictiologia de 2009 e 2019, cerca de 25% das palestras magnas apenas eram de mulheres. E nos perguntamos: por que isso? Sabemos que não é por ter menos ictiólogas disponíveis, pois as mulheres representam 40% das associações à Sociedade Brasileira de Ictiologia. É menos da metade, mas ainda assim não é 25%. Apresentar este e outros dados em congressos já tem surtido efeito. Por exemplo, hoje a revista Neotropical Ichthyology leva em consideração essas questões ao convidar cientistas para os artigos das edições especiais. Infelizmente, é estrutural em nossa sociedade pensarmos primeiro em homem quando falamos de ciência e dificilmente lembramos das importantes mulheres cientistas. Mas, cientes da disparidade existente, devemos nos atentar à questão de gênero e nos questionar: “existem mulheres com a mesma experiência ou qualificação que homens para aquele determinado assunto? ”. Uma simples pergunta abriu a mente para trazermos mais mulheres, não pelo fato de serem mulheres, mas sim por considerar a competência de cada uma delas. Falar sobre uma desigualdade que existe, com base em dados, é fundamental e deve ser feito em todas áreas da Biologia.

O outro exemplo de ação que vale muito a pena comentar é da Rede Kunhã Asé, que é o projeto Semeando Ciência. A gente escolheu uma escola aqui na periferia de Salvador para trabalhar com crianças do 6º ao 9º ano a disparidade de gênero, começando com os docentes, tudo online. Apresentamos dados, mostramos um vídeo. E seguimos com jogos educativos com as crianças, em cima de um livro chamado “Sonhos de Ághata”, de autoria de Luciana Leite, sobre uma criança que sonhava em ser cientista, levando a mensagem de que as estudantes podem ser o que quiserem, inclusive cientistas.

 

CRBio-07: A sua experiência profissional também influenciou no seu envolvimento com o movimento pela maior valorização da mulher na ciência?

Priscila: Eu tive uma grande sorte de ter sido ‘educada’ na ciência com mulheres, que tive como grande referência. Aprendi a ir para campo com mulheres, mas sei que isso não é comum. Eu demorei para perceber algumas situações que até enxergava como natural, mas que não podem perpetuar. A gente vive diversas situações no nosso dia a dia. Sou coordenadora do museu de História Natural da Bahia, um tempo atrás estávamos em obras e o mestre de obras estava falando do rejunte no chão, então eu quis tirar uma dúvida com ele, afinal temos uma coleção de peças muito pesadas. Ele me respondeu que se me explicasse eu não iria entender, por ser mulher. Respondi que eu sou Bióloga, não pedreira, nem engenheira civil e que ele deveria me explicar pois é a área dele. Assim como se ele tivesse qualquer dúvida de peixes ou sobre Biologia para aquele trabalho eu deveria lhe responder. Mas é um tipo de comentário que acontece todos os dias e não é toda mulher que responde, algumas se retraem e depois se sentem desencorajadas a lidar novamente com alguns temas. Isso influencia até na forma como a própria mulher se vê, o que é um absurdo.

CRBio-07: Acredita que a sua posição como coordenadora do Museu e de projetos de pesquisa lhe coloca como o modelo feminino que comentou?

Priscila: Eu acredito muito na importância de ser uma referência feminina para as acadêmicas. É um trabalho muitas vezes desgastante, estou exausta na coordenação do museu até pelo cenário atual de falta de incentivo, mas já ouvi recentemente de minhas alunas de iniciação científica que sou uma inspiração para elas. Então isso me anima muito sim. Por isso também fiquei muito feliz com o convite de vocês do CRBio-07 para abordar esse tema, pois precisamos muito seguir falando sobre o assunto.