O campo da biologia evolucionária já testemunhou diversos debates acirrados. Mas se existe um princípio com o qual praticamente todos os especialista da área concordam é o de que a seleção natural ocorre no nível do genoma.
Mas, agora, uma equipe de pesquisa liderada pela Universidade da Califórnia em São Francisco descobriu a primeira evidência conclusiva de que a seleção também pode ocorrer no nível do epigenoma – um termo que se refere a uma variedade de “anotações” químicas ao genoma que determinam se, quando e até que ponto os genes são ativados. Aparentemente, isso ocorreria há dezenas de milhões de anos. Esse achado desafia a ideia amplamente aceita de que, em vastas escalas de tempo, a seleção natural atua exclusivamente sobre as variações ocorridas na seqüência do genoma.
Em um estudo publicado em 16 de janeiro de 2020 na revista Cell, os pesquisadores mostram que o Cryptococcus neoformans – uma levedura patogênica que infecta pessoas com sistema imunológico enfraquecido e é responsável por cerca de 20% de todas as mortes relacionadas ao HIV / AIDS – contém uma “marca” epigenética específica em sua seqüência de DNA. Com base em suas experiências de laboratório e modelos estatísticos, os estudiosos sustentam que esta marca já deveria ter desaparecido da espécie em algum momento durante a época em que os dinossauros caminhavam pela terra.
Mas o estudo mostra que este sinal de um fenômeno de metilação (assim chamado porque é criado por meio de um processo em que um marcador molecular, chamado grupo metil, é anexado ao genoma) conseguiu permanecer por pelo menos 50 milhões de anos após a data prevista de “vencimento”, e talvez esse período seja de até 150 milhões de anos. Essa incrível façanha de resistência evolutiva é possível graças a uma enzima incomum e a uma grande dose de seleção natural.
“O que vimos é que a metilação pode sofrer variação natural, e pode ser selecionada ao longo de períodos de mais de um milhão de anos, a fim de impulsionar a evolução”, explicou Hiten Madhani, professor de bioquímica e biofísica da UCSF e autor sênior do novo estude. “Este é um modo de evolução não considerado anteriormente, e que não se baseia em mudanças na sequência de DNA do organismo.”
Embora não esteja presente em todas as formas de vida, a metilação do DNA também não é incomum. É encontrada em todos os vertebrados e plantas, assim como em muitos fungos e insetos. Em algumas espécies, no entanto, a metilação não ocorre.
“A metilação tem uma presença evolutiva desigual”, disse Madhani, que também é membro do Centro de Câncer da Família Helen Diller da UCSF. “Dependendo de para qual ramo da árvore evolutiva se olhe, diferentes mecanismos epigenéticos foram mantidos ou não.”
Muitos organismos-modelo que são básicos na moderna pesquisa em laboratório de biologia molecular – incluindo a levedura de padeiro S. cerevisiae, a lagarta C. elegans e a mosca da fruta D. melanogaster – carecem totalmente da metilação do DNA. Essas espécies descendem de ancestrais antigos que perderam enzimas que, até a publicação deste estudo, eram consideradas essenciais para a propagação da metilação de geração em geração. Mas entender como o C. neoformans evitou este caminho era algo ignorado até agora.
No novo estudo, Madhani e seus colaboradores mostram que, centenas de milhões de anos atrás, o ancestral do C. neoformans possuía duas enzimas que controlavam a metilação do DNA. Uma delas era conhecido como “metiltransferase de novo” (de novo, neste caso, é uma expressão latina que significa nova, original), responsável por adicionar marcas de metilação ao DNA “nu”, isto é, que não possuía o radical metil.
O outro era uma “metiltransferase de manutenção” que atuava como se fosse uma copiadora molecular. Essa enzima copiou marcas de metilação que então existiam, e que foram posicionadas pela metiltransferase de novo, em DNA não metilado durante a etapa de replicação do DNA. E, assim como ocorria com todas as demais espécies que possuíam o mecanismo de metilação em seu epigenoma, o ancestral do C. neoformans possuía ambos os tipos de metiltransferase.
Mas então, durante a era dos dinossauros, o ancestral do C. neoformans deixou de possuir a enzima de novo. Desde então, seus descendentes vivem sem uma enzima nestes moldes, o que tornou o C. neoformans e seus parentes mais próximos a única espécie viva hoje conhecida por exibir metilação no DNA sem possuir uma metiltransferase deste tipo. “Não entendemos como a metilação ainda poderia estar em vigor desde o período cretáceo sem uma enzima de novo“, disse Madhani.
Embora a metiltransferase de manutenção ainda estivesse disponível para copiar quaisquer marcas de metilação existentes – e o novo estudo demonstre claramente que essa enzima é singular por várias razões, incluindo sua capacidade de propagar marcas de metilação existentes com uma fidelidade excepcionalmente alta – o estudo também mostra que, a menos que a seleção natural agisse para preservar a metilação, a perda da metiltransferase de novo ocorrida em tempos tão remotos deveria ter resultado no desaparecimento da metilação do DNA no C. neoformans.
Essa desaparecimento já deveria ter ocorrido devido ao fato de que as marcas de metilação podem ser perdidas aleatoriamente. Isso implica que, por mais requintada que seja o trabalho da metiltransferase de manutenção em copiar marcas existentes para novas cadeias de DNA, a perda acumulada de metilação eventualmente deixaria a enzima de manutenção sem um modelo com o qual trabalhar. Embora seja concebível que esses eventos de perda possam ocorrer em um ritmo lento, observações experimentais permitiram aos pesquisadores determinar que cada marca de metilação em C. neoformans provavelmente desaparecesse da metade da população após apenas 7500 gerações. Mesmo assumindo que, por alguma razão, C. neoformans possa se reproduzir 100 vezes mais lentamente na natureza do que no laboratório, isso ainda seria o equivalente a apenas 130 anos.
A aquisição rara e aleatória de novas marcas de metilação também não pode explicar a persistência da metilação no C. neoformans. As experiências de laboratório dos pesquisadores demonstraram que novas marcas de metilação surgem por acaso a uma taxa 20 vezes mais lenta que as perdas de metilação. Nas escalas de tempo evolutivas, as perdas predominariam claramente e, sem uma enzima de novo para compensar, a metilação teria desaparecido de C. neoformans na época em que os dinossauros desapareceram, não fosse por pressões de seleção favorecendo as marcas.
De fato, quando os pesquisadores compararam uma variedade de cepas de C. neoformans que sabidamente divergiam umas das outras há quase 5 milhões de anos, eles descobriram que não apenas todas as cepas ainda tinham metilação do DNA, mas as marcas de metilação estavam revestindo regiões do genoma análogas. Essa descoberta que sugere que marcas de metilação em locais genômicos específicos conferem algum tipo de vantagem de sobrevivência que está sendo selecionada.
“A seleção natural está mantendo a metilação em níveis muito mais altos do que seria esperado de um processo neutro de ganhos e perdas aleatórios. Esse é o equivalente epigenético da evolução darwiniana”, disse Madhani.
Questionado sobre por que a evolução selecionaria essas marcas em particular, Madhani explicou que “uma das principais funções da metilação é a defesa do genoma. Nesse caso, pensamos que é para silenciar os transpósons”.
Os transpósons, também conhecidos como genes saltadores, são trechos de DNA capazes de se extrair de uma parte do genoma e se inserir em outra. Se um transpóson se inserisse no meio de um gene necessário para a sobrevivência, esse gene não funcionaria mais e a célula morreria. Portanto, a metilação silenciadora de transpósons fornece uma vantagem óbvia de sobrevivência, que é exatamente o que é necessário para impulsionar a evolução.
No entanto, resta ver como é comum essa forma não apreciada de seleção natural em outras espécies.
“Anteriormente, não havia evidências desse tipo de seleção ocorrendo ao longo desses períodos. Esse é um conceito totalmente novo”, afirmou Madhani. “Mas agora a grande questão é: ‘Isso está acontecendo fora dessa circunstância excepcional e, se sim, como a encontramos?’”
Fonte: Scientific American Brasil