Enfrentar epidemias sempre fez parte da rotina dos pesquisadores da Fundação Ezequiel Dias (Funed), que entre outras frentes de trabalho abriga o Laboratório Central de Saúde Pública do Estado de Minas Gerais. O enfrentamento ao coronavírus, contudo, impôs novos e maiores desafios: em um ponto pelo aumento da demanda no setor de diagnósticos. Em segundo lugar, por se tratar de um vírus novo, ainda desconhecido. E, por fim, mas não menos importante, pelo nível de desinformação causado, principalmente, pelas fake news que circulam nas redes sociais.
Quem lista esses desafios é a Bióloga Myrian Morato Duarte (CRBio 057893/04-D), mestre e doutora em Microbiologia pela UFMG e que atua no laboratório de cultivo celular e isolamento viral da Funed, em Belo Horizonte. O setor é o principal responsável pelos diagnósticos de coronavírus em Minas Gerais e já realizou a análise de mais de 25 mil amostras desde meados de março, trabalhando atualmente com um tempo médio de três dias entre o recebimento e a liberação do resultado.
Confira a entrevista realizada pelo Sistema CFBio/CRBios com a pesquisadora, que também se dedica a ilustrações científicas e a projetos de divulgação científica:
Sistema CFBio/CRBios: A Funed é a principal responsável em Minas Gerais pelo diagnóstico do novo coronavírus, realizando testes PCR. Como esse exame funciona? Quais suas vantagens e desvantagens em relação ao teste rápido?
Myrian M. Duarte: O PCR em tempo real é o teste oficial para detectar o coronavírus, porque ele acusa a presença do vírus na amostra analisada. Após a coleta, extraímos todo o material genético presente, separamos o RNA viral e submetemos a um aparelho que fará sua amplificação e leitura. É um processo demorado, delicado e com várias etapas, mas com chance mínima de um falso positivo. Além de preciso, o PCR tem dupla função: além de detectar a infecção, indica se você pode ou não transmiti-la a outra pessoa.
Os testes sorológicos (testes rápidos) não detectam o vírus, e sim a resposta imune do paciente, que depende de vários fatores e ocorre algum tempo depois da infecção. Não podem, portanto, ser utilizados como garantia de que o paciente não está infectando outras pessoas. Além disso, os testes rápidos disponíveis ainda possuem uma sensibilidade baixa, podendo fornecer resultados falso-negativos. Portanto, precisam ser utilizados com critério.
Sistema CFBio/CRBios: Como a rotina laboratorial na Funed se alterou desde o início da pandemia? Como têm acontecido os diagnósticos de outras doenças como zika, dengue etc?
Myrian M. Duarte: Como laboratório central de saúde pública de Minas Gerais, sempre enfrentamos epidemias e temos uma equipe capacitada e acostumada a essa realidade. Contudo, a diferença na pandemia de COVID-19 está no volume de amostras que recebemos, muito superior ao normal. Foi necessária uma divisão de equipes e equipamentos, inclusive porque ainda estamos enfrentando a epidemia de dengue, o que é outro complicador.
Sistema CFBio/CRBios: Em quais aspectos essa epidemia, então, se diferencia de outras?
Myrian M. Duarte: Quando surgiu a epidemia de H1N1, por exemplo, foi uma novidade, mas estávamos lidando com um vírus Influenza, já conhecido. O coronavírus é uma epidemia nova em vários sentidos. As epidemias de SARS e MERS – os outros dois coronavírus que se espalharam entre humanos – foram restritas e, nem de longe, comparam-se ao quadro atual, em que o vírus se espalhou no mundo inteiro e muito rapidamente. Nos outros episódios, quando começou a se cogitar a pesquisa de vacinas, as epidemias acabaram e os estudos estacionaram. Por isso, agora, tivemos que começar quase do zero, lutando contra um vírus que é muito rápido. Isso reforça a necessidade do investimento e da valorização da pesquisa básica, que usualmente é desprezada por não trazer retorno financeiro imediato.
Sistema CFBio/CRBios: Seguindo nesse assunto da vacina, como você avalia as iniciativas em desenvolvimento? Quão promissoras são?
Myrian M. Duarte: É uma pergunta difícil de responder, exatamente por se tratar de um vírus novo. Ainda não temos muitas informações de como o novo coronavírus ataca o sistema imune. Fazendo uma correlação com a dengue, por exemplo: já conhecemos a doença há muito tempo e temos ideia de como esse ataque se dá, mas ainda assim não conseguimos desenvolver a vacina. Ao vacinar uma pessoa, sua resposta imune quando encontrar o agente patogênico será maior. Contudo, o vírus da dengue causa uma doença mais grave no hospedeiro diante de uma resposta imune mais severa, ou seja, uma vacina pioraria o quadro do paciente e facilitaria a evolução para uma dengue hemorrágica.
Por outro lado, a vacina para Influenza é totalmente factível, segura e com uma resposta imune eficiente. Onde o coronavírus se encontra nesse espectro? Ainda não se sabe. Por isso existe a possibilidade de uma vacina feita às pressas ter problemas. Ainda estamos na primeira onda e precisamos avaliar como o vírus irá se comportar daqui pra frente.
Sistema CFBio/CRBios: Pesquisas e a própria OMS apontaram, mais recentemente, a COVID-19 como uma doença sistêmica (e não apenas respiratória) e com grande possibilidade de se tornar endêmica. São visões que você compartilha?
Myrian M. Duarte: O novo coronavírus tem várias ações no organismo que ainda estamos começando a entender. Já foram detectadas reações neurológicas, quadros inflamatórios, problemas de coagulação. Realmente não é um vírus só respiratório, ele age em todo o corpo e são alterações, diria, bem exóticas.
Sobre a endemicidade, acredito ainda ser muito cedo para afirmar. Houve um grande receio, à época, do espalhamento da MERS e SARS, e ambas sequer saíram do local de origem. É muito difícil fazer previsões na primeira onda de um vírus. Ele pode sumir como os dois parentes ou pode, realmente, ficar aí anos a fio e ressurgir ocasionalmente, como o H1N1 e vários outros que se estabeleceram e causam epidemias regulares.
Sistema CFBio/CRBios: Pesquisas nos Estados Unidos e no Reino Unido já identificaram centenas de mutações no Sars-Cov-2. O quanto isso dificulta o desenvolvimento da vacina?
Myrian M. Duarte: Mutações em vírus são normais. Todo vírus, quando sofre mutação, tende a manter uma área mais preservada, como, por exemplo, a proteína de ligação à célula hospedeira. Por isso, as vacinas vão atrás dessas partes conservadas do vírus. Isso não é uma regra absoluta, contudo. O HIV escapa a essa lógica, o que dificulta o desenvolvimento da vacina, além do fato de ser um vírus que quer ser atacado, por agir exatamente nas células do sistema imune. Cada vírus tem características absolutamente únicas e ainda estamos começando a conhecer o Sars-Cov-2.
Sistema CFBio/CRBios: Abordando sua experiência na área de divulgação científica: com uma cobertura tão maciça da imprensa sobre a COVID-19, há algo que ainda não foi dito ou que não esteja sendo abordado da forma mais precisa?
Myrian M. Duarte: Tudo já foi dito, mas as pessoas têm suas bolhas particulares e não adianta você falar pelos canais oficiais quando a maioria, ultimamente, tem se informado exclusivamente pelo WhatsApp. O governo fala em rede nacional que você precisa usar máscara, mas sua mãe te manda um vídeo afirmando que as máscaras já vêm com coronavírus ou que seu uso por mais de 20 minutos ocasiona hipóxia e morte. Como combater isso? É sua mãe, é sua tia querida, é o seu parente em quem você confia. Você vai acreditar no jornal?
Então a questão não é o que está deixando de ser falado, é o que está deixando de fazer efeito nas pessoas. Temos diretrizes e elas estão sendo comunicadas. O que é preciso é que as pessoas acreditem nas evidências, acreditem na ciência. Precisamos compreender, até mesmo de uma perspectiva psicológica, o que leva as pessoas a criarem e disseminarem esses conteúdos, e precisamos de políticas para identificá-las e puni-las. Na batalha não contra a falta de informação, mas contra a informação errônea, estamos perdendo de lavada.
Sistema CFBio/CRBios: Na busca pela informação de qualidade, qual papel a Funed desempenha nessa pandemia?
Myrian M. Duarte: Atuando no diagnóstico, nosso papel primordial é justamente fornecer dados corretos sobre o número de infectados, se a epidemia está aumentando ou diminuindo, quais as cidades com mais registros, quais os bairros mais afetados, qual a dinâmica do vírus.
Com essas informações, tentamos minimizar os impactos futuros, objetivando cercar o espalhamento do vírus. Contudo, esse trabalho depende da colaboração e da conscientização das pessoas, mas as fake news dificultam bastante.
Sistema CFBio/CRBios: Qual o papel dos Biólogos – seja na saúde, em meio ambiente, em biotecnologia – no combate ao coronavírus e outros agentes patogênicos?
Myrian M. Duarte: Temos uma das profissões mais lindas e nosso trabalho é imprescindível. É até difícil precisar o quão importante seria o papel dos Biólogos ambientalistas nessa epidemia, mas eles não estão sendo ouvidos. Afinal, foi um problema ambiental que disparou essa epidemia, assim como várias outras, como febre amarela e ebola. É o ser humano entrando em contato de forma errada com a natureza. Tudo está interligado e, nenhuma área mais que a Biologia, consegue explicar isso. O que podemos fazer, nesse momento, é divulgar a ciência, o bom senso e a conscientização. Com isso, todo Biólogo e todo profissional sério estará ajudando no combate a essa pandemia.
Nossa profissão está ligada à sustentabilidade da raça humana no futuro. Combater as fake news, combater a transformação da epidemia em jogo político e exaltar o respeito ao meio ambiente são facetas importantíssimas dessa luta.