“Em 1492, Colombo navegou o oceano azul”, diz o poema. Essa história é conhecida.
Exploradores transatlânticos mais antigos já haviam deixado Colombo para trás: é quase certo que vikings fizeram a travessia. Egípcios e outros grupos também teriam conseguido.
Se essas viagens pré-colombianas parecem incríveis, em nada se comparam a uma jornada que parece ter ocorrido há 40 milhões de anos.
No meio do período Eoceno, um grupo de macacos navegou um oceano… verde.
E essa turma intrépida também buscava glória e riqueza do outro lado do oceano. Bem, ou quase isso.
A história evolutiva dos primatas vem recebendo ampla atenção da ciência ao longo dos anos. Nada surpreendente: a história deles é a nossa, e a trajetória da pesquisa das raízes da humanidade acaba revelando muito sobre nossos ancestrais.
Sabemos, por exemplo, que os primatas provavelmente se originaram na Ásia, e graças a novos e sofisticados estudos é possível estimar com precisão a data de aparecimento de diferentes grupos e espécies.
Mistério
Um assunto que sempre intrigou pesquisadores, contudo, é como os primatas chegaram à América do Sul.
Avanços na geologia nos anos 1950 e 1960 pareciam ter apontado pistas. Era o período de refinamento dos conceitos de deriva continental e placas tectônicas, ideias que logo se tornariam uma explicação “guarda-chuva” para distribuições estranhas de espécies pelo planeta.
No caso do “enigma do macaco”, a argumentação era simples. Não havia oceano Atlântico no passado remoto – África e América do Sul formavam uma massa terrestre chamada Gondwana.
O ancestral primitivo dos macacos do Novo Mundo e do Velho Mundo poderia então literalmente ter caminhado – ou se balançado – até a atual costa leste da América do Sul.
Técnicas de relógio molecular estimam hoje a data de existência do último ancestral comum entre macacos dos mundos Novo e Velho em cerca de 100 milhões de anos após a divisão dos continentes. Então, essa ideia de travessia terrestre caiu por terra.
Cientistas estabeleceram teorias alternativas. Talvez os macacos tivessem feito a travessia a partir de fora da África – via América do Norte ou pela Antártida. Mas não há fósseis para sustentar essas ideias.
Descoberta
Embora pareça estranho, o mais provável é que os macacos tenham tido que cruzar o Atlântico. Novas evidências vieram à tona recentemente, reacenderam o debate e colocaram em alta a hipótese da travessia transatlântica.
Uma equipe coordenada por Mariano Bond, da Universidade Nacional de La Plata, na Argentina, desenterrou amostras de dentes de macaco surpreendentemente familiares durante escavações na Amazônia peruana.
“Um dente é muito, muito parecido com um fóssil de dente da África”, anima-se Ken Campbell, membro da equipe e curador no Museu de História Natural de Los Angeles.
A partir dali os pesquisadores puderam identificar uma nova espécie, pequena e parecida com os saguis atuais, que denominaram Perupithecus ucayaliensis. A semelhança com o Talahpithecus, um gênero de macaco que viveu no norte da África no Euoceno, é impressionante.
A origem do Perupithecus é o periodo final do Euoceno, há cerca de 36 milhões de anos, o que faz essa espécie o macaco do Novo Mundo mais antigo já identificado. E mais importante ainda: a descoberta fornece pela primeira vez um vínculo direto entre os ancestrais dos atuais macacos do Novo Mundo e os ancestrais primatas da África.
Quebra-cabeça
Com o consenso sobre o papel da África como uma espécie de berço original a partir do qual os macacos do Novo Mundo se espalharam em algum ponto entre 40 e 44 milhões de anos atrás, o que sobra é uma questão: o oceano Atlântico.
O Atlântico se expande um pouco a cada ano. No Euoceno, ele certamente era menor do que hoje, mas ainda era bem grande – tinha ao menos 1,4 mil km de largura. E como esses macacos primitivos cruzaram essa distância aparentemente insuperável?
Em geral, há duas explicações possíveis.
Uma é o island hopping, ato de atravessar um oceano em jornadas menores de ilha a ilha. Os níveis dos oceanos oscilaram ao longo da história terrestre. Terras emergiram e foram cobertas pelas ondas.
Em tese, quando os níveis dos mares estiveram mais baixos, cadeias de ilhas vulcânicas podem ter ligado de alguma maneira a África e a América do Sul, facilitando a travessia.
No entanto, mesmo se houvesse uma cadeia de ilhas à mão, nossos precursores primatas ainda precisariam de transporte entre as ilhas. Aqui é onde os “macacos marinheiros” entram na história.
Navegação
A segunda ideia é a dispersão oceânica por rafting, um conceito que pode parecer lunático, mas conta com uma boa bagagem de precedentes na biologia. Quem o sugeriu primeiro foi um dos pais da biologia da evolução, Alfred Russell Wallace, e desde então ele já foi empregado para explicar tudo, de cobras garter no México à fauna de mamíferos de Madagascar.
Antes do aparecimento da teoria das placas tectônicas e da deriva continental, o processo do rafting era a explicação para qualquer distribuição geográfica intrigante de espécies.
Como a hipótese das placas tectônicas não explica como os macacos chegaram à América do Sul, o rafting deve ter tido um papel. Na verdade já foi até sugerido que esses processos também tenham sido responsáveis pela chegada dos ancestrais de roedores e aves como o jacu-cigano. O Atlântico no Euoceno foi uma verdadeira rota para criaturas náuticas.
E o que era o rafting na prática? Claro que as pequenas criaturas identificadas por Bond e sua equipe no Peru não eram capazes de construir uma canoa. A tarefa seria ainda mais difícil para uma cobra. Na verdade, a “canoa” em questão é algo mais parecido com uma ilha flutuante.
Se isso começa a soar estranho, você está em boa companhia. Em uma longa análise sobre o assunto, Alain Houle, da Universidade de Montreal, adverte seus colegas para o perigo de usar a hipótese do rafting como explicação para tudo, sem considerar aspectos práticos.
Precaução
Mesmo o influente paleontologista George Gaylord Simpson, que defendeu a teoria do rafting já nos anos 1940, reconheceu que “esse tipo de migração acidental é aventada sempre que é preciso explicar fatos que contradizem a tese principal”.
Com essa precaução em mente, Houle procurou antes quantificar a chance de uma ilha como essa se formar. Depois, a possibilidade de transportar uma população saudável de mamíferos ao longo de metade do planeta.
O primeiro passo é definir a aparência dessas chamadas “ilhas flutuantes”. A imagem que vem à mente é a de uma porção de terra, ao menos uma grande massa de vegetação, sendo arrastada pelo mar durante tempestades violentas.
Tais eventos já foram documentados, embora raramente. Também já houve registros de tapetes de vegetação carregados pela corrente Sul Equatorial entre os rios Níger e Congo, na África, até a costa brasileira – exatamente o tipo de ocorrência necessário à odisseia ancestral dos macacos.
Se esses supostos botes naturais tinham árvores em pé – como formações semelhantes no passado – Russell Ciochon, da Universidade de Iowa, e Brunetto Chiarelli, da Universidade de Florença, sugerem que seria possível a realização desse tipo de navegação.
Pesquisa sobre o fluxo ancestral de correntes oceânicas (examinando aspectos geológicos como estruturas sedimentares) indicou que correntes fortes em direção oeste, vindas do oeste da África, existiram no período Eoceno, como hoje.
Apesar disso, estimativas básicas feitas pelo paleontologista Elwyn Simons indicaram que uma jornada transatlântica que dependesse apenas das correntes levaria, no mínimo, 60 dias – talvez mais do que o mais resistente dos macacos possa aguentar.
Por isso, diz Houle, a ideia da navegação é crucial para toda a teoria. Em sua análise, ele considera efeitos do vento nesses “barcos” hipotéticos, a partir de velocidades eólicas modernas no Atlântico. Estima que, há 40 milhões de anos, o Atlântico poderia ter sido atravessado em bote em 14,7 dias.
Vale mencionar que Houle, como outros pesquisadores que analisaram a ideia em detalhes, tende a apostar na hipótese de uma longa travessia, mais do que pequenas jornadas por cadeias de ilhas vulcânicas.
Considere a probabilidade de um bote se formar uma vez e fazer contato com a terra e a chance de isso ocorrer várias vezes com a mesma população de criaturas. Talvez a última ideia seja forçar demais a imaginação.
Resistência
O próximo enigma é o bem-estar dos passageiros a bordo da ilha flutuante. Se os macacos hipotéticos estiveram nessas estruturas por muito tempo, é importante considerar se tinham as características fisiológicas necessárias para a sobrevivência.
O prazo de 14 dias estimado por Houle torna a possibilidade de cruzamento mais plausível do que estimativas anteriores, mas os macacos ainda teriam que enfrentar desidratação, fome e exposição ao sol.
Por motivos óbvios, é impossível afirmar com certeza como esses animais teriam respondido a um novo estilo de vida náutico, e é eticamente questionável buscar a resposta enchendo jangadas com macacos e enviando-as à deriva. Mas podemos inferir as chances de sobrevivência a partir de um entendimento mais geral da fisiologia dos mamíferos.
Campbell, um dos membros da equipe que descobriu o dente na Amazônia e defensor ardoroso da hipótese da jangada, destaca que esses animais eram pequenos – quase do tamanho de esquilos – e teriam exigências simples de comida e água.
Dito isso, estudos comparativos de resistência à privação de água têm indicado que mamíferos menores tendem a ser bem menos capazes de lidar com a desidratação.
Mas alguns mamíferos conseguem se dar bem com a desidratação, como aqueles provenientes de regiões áridas. Se esses primatas fossem da safra do oeste da África, há boa chance de que estivessem bem adaptados à sobrevivência em ambientes duros e imprevisíveis.
Um estudo comparativo realizado por Arturo Cortes e uma equipe da Universidade do Chile demonstrou que degus – roedores do tamanho de pequenos macacos que habitam regiões semiáridas do Chile – podem sobreviver por quase duas semanas sem água.
É difícil encontrar prova concreta para uma ocorrência tão rara. Mas tendo em conta a viabilidade da formação de ilhas flutuantes e sua capacidade de transportar uma população saudável de macacos, pelo menos é possível dizer que a façanha poderia, em tese, ter ocorrido.
A teoria do rafting oceânico tem recebido uma boa porção de críticas ao longo dos anos, mas quanto mais seus efeitos podem ser devidamente quantificados, ela gradativamente passa de uma ideia conveniente a uma hipótese bem testada e legítima.
A ideia do “macaco marinheiro”, embora bizarra, já não parece tão absurda como no passado.
Autor de The Monkeys’ Voyage, o biólogo Alan de Queiroz diz que há uma “contrarrevolução” em curso contra explicações simples de distribuição animal pela deriva continental. Ele sugere um modelo mais complexo no qual biólogos evolucionistas aderem a ideias aparentemente malucas sobre dispersão oceânica para explicar nosso entendimento da natureza.
Hoje, as florestas tropicais da América do Sul são tomadas por gritos e sons de tudo, de pequenos micos a bugios estridentes, escondendo-se em buracos e balançando em árvores.
É incrível pensar que esses animais diversos e carismáticos podem ser rastreados até alguns ensopados pioneiros, tropeçando fora de um barco acidental há milhões de anos rumo a um novo mundo.
Eles podem não ser tão conhecidos como Colombo e seus companheiros primatas sem pelos, mas esses “macacos marinheiros” merecem seu próprio lugar na história.
Fonte: BBC Brasil
Imagem: Stock Photo | Boaz Rottem Alamy