O surpreendente da ciência é a possibilidade de encontrar um objeto de pesquisa onde menos se espera. E só o olhar atento, a dedicação, a curiosidade, do pesquisador para identificar que, numa realidade comum para a maioria de nós, há uma situação a ser investigada.

E foi por causa da visão científica da professora da Universidade Federal de Alagoas, Ana Paula Lopes da Silva, lotada no Instituto de Geografia, Desenvolvimento e Meio Ambiente (Igdema), que importantes nascedouros de água no município de Maravilha estão sendo reflorestados e preservados.

Em 2010, ao acompanhar o esposo, que também é docente da Ufal, numa pesquisa sobre fósseis no semiárido alagoano, ela ficou sabendo da existência de nascentes no topo de uma serra chamada Caiçara.

Naquele ano, devido a um defeito na máquina da Adutora do Sertão, rede responsável pelo abastecimento da área urbana da cidade, a prefeitura local recorreu às águas dessas fontes para abastecer uma população de cerca de 6.500 habitantes pelo período de uma semana.

“Para mim, foi uma grande surpresa. Até então, não podia nem imaginar que naquele semiárido todo, região extremamente difícil ao acesso de água, tivessem nascentes, ainda mais perenes”, conta. Maravilha está localizada no sertão de Alagoas. “Pesquisadores que trabalhavam lá há mais de 20 anos não as conheciam”, acrescenta.

Os olhos-d’água estão em propriedades particulares, escondidos em complexas trilhas. Os moradores mais antigos da cidade tinham conhecimento deles e passaram informações para a pesquisadora. “Eles falaram que a cidade vivia dessas fontes, quando não tinha a adutora, e eram de extrema relevância nos períodos de seca”.

Diante da escassez de água potável, a geógrafa, doutora em Geologia Sedimentar, não hesitou em transformar aquela realidade em objeto de estudo e iniciou um trabalho de recuperação das nascentes. Além da necessidade de preservar os mananciais, ela defende a urgência de investimentos na rede de abastecimento e a adoção de medidas que promovam o uso racional do recurso por grandes indústrias, produtores rurais e pelo cidadão em seus afazeres diários. “Definitivamente, não dá mais para desperdiçar”, alerta.

Participação dos moradores da Caiçara
Para poder realizar os estudos, a professora Ana Paula precisou conquistar a confiança dos moradores da Serra da Caiçara, proprietários das terras onde estão localizadas as nascentes. São 11 famílias, formadas por pessoas simples que sobrevivem do que cultivam e da criação de animais.

“Eles tinham receio de que houvesse o interesse na terra deles. Por isso, primeiramente, entramos com a proposta de conversar, de sensibilizá-los de que aquele era um recurso extremamente importante para a comunidade, para subsistência deles e que precisava ser preservado”, explica. Ela ressalta que não enfrentou dificuldades com os moradores. “Fui muito bem recebida, eles se mostraram bem receptivos”, disse.

Os trabalhos começaram no mesmo ano de 2010 e contou com a participação de estudantes dos cursos de Geografia e Biologia, por meio do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (Pibic). Inicialmente, três nascentes foram georreferenciadas pela equipe de pesquisadores. Foi feito o monitoramento da vazão hídrica para saber se permaneciam com água no período de estiagem. Após um ano, para a surpresa da pesquisadora, mesmo na estação mais seca, continuavam correntes, embora a vazão tivesse diminuído.

Em um contínuo trabalho de conscientização, os moradores da Serra foram envolvidos na pesquisa, participando, inclusive, do monitoramento. “Por falta de recursos, era impossível enviar alunos para realizar esse trabalho. Como o método de medição era bem simples, bastando apenas relógio com cronômetro e recipiente de volume conhecido, um rapaz da localidade conseguia fazer, uma vez por mês, e nos enviava o resultado”, relata.

Análises químicas e biológicas para avaliar a qualidade da água também foram realizadas em parceria com o Laboratório de Oceanografia Química, coordenado pelo professor Paulo Medeiros, e com o químico Manoel Messias dos Santos, dos Laboratórios Integrados de Ciências do Mar e Naturais (Labmar) da Ufal.

Os resultados mostraram a ausência de contaminação por agentes químicos. O problema encontrado foi o alto índice de coliformes fecais pela existência de animais próximos aos mananciais. Para solucioná-lo, foi recomendado o uso de cercas para impedir o acesso do gado. Orientação seguida pelos moradores e que garantiu o retorno a níveis saudáveis.

Outra ação desenvolvida foi em relação aos costumes das mulheres de lavar roupas e pratos nas fontes. “Explicamos os malefícios dos materiais de limpeza para a qualidade da água. Prontamente, elas aceitaram e, hoje, todas já mudaram esses hábitos”, comemora.

A cada dois meses, a pesquisadora e os estudantes da Ufal visitavam o local para avaliar os resultados das intervenções. Esse engajamento conquistou a confiança dos moradores da Serra e, após anos de trabalho, em 2014, eles apresentaram mais onze olhos-d’água, totalizando 14 nascentes em apenas um lado da Caiçara. “Foi uma imensa surpresa para mim. Tudo isso se deve à confiança que eles tiveram no trabalho. Eles viram que o intuito era apenas a pesquisa, a preservação, e não o interesse nas terras deles”.

Reflorestamento
Com as etapas de conscientização e monitoramento já realizadas, teve início o processo de reflorestamento das nascentes. Conforme a pesquisadora, elas apresentavam um elevado grau de degradação. Foi elaborado um inventário de plantas nativas, cujo resultado foi a identificação de 24 espécies de caatinga para servir de base ao plantio. Essa etapa contou com o apoio da professora Flávia de Barros Moura, do Instituto de Ciências Biológicas e da Saúde (ICBS), responsável pelo Centro de Referência em Recuperação de Áreas Degradadas do Baixo São Francisco (Crad).

Dois nascedouros foram reflorestados em março de 2014. No ano seguinte, ao visitar os locais, muitas das árvores plantadas já estavam com mais de um metro. “Pra gente foi fantástico, foi um sucesso o reflorestamento em Maravilha”, conta.

Segundo a professora, a plantação de mudas nas outras 12 nascentes vai ficar para um próximo momento. “Fizemos uma espécie de modelo, de teste, para ver como as espécies se desenvolviam. Acompanhamos o crescimento e tivemos 10% de perda, uma margem aceitável e que foi uma grande surpresa para nós”, comentou.

Nascentes em terras particulares
Pelo fato de as nascentes estarem localizadas em terras particulares, podem surgir questionamentos sobre a relevância da pesquisa para a população em geral de Maravilha e também para as cidades vizinhas. Sobre isso, a professora Ana Paula apresenta um convincente esclarecimento: “Eles não têm o domínio para bloquear ou colocar obstáculos para abastecer outras comunidades. A água nasce na propriedade deles, desce por gravidade até o pé da serra e se agrega a um riacho que é intermitente [que seca no período de estiagem]”, explicou.

Ainda segundo a pesquisadora, quando chove muito, as águas das nascentes drenam os riachos que deságuam no rio Ipanema, que é a bacia maior, e está bem próximo da Serra da Caiçara. “Não tem como delimitar que essa água é só deles. Nem se quisessem, isso é da própria natureza. Um exemplo disso foi o abastecimento da cidade pelo período de uma semana. Eles não controlaram, não venderam, não proibiram de pegar. A preservação das nascentes representa um ganho para toda população de Maravilha”, defende.

O Rio Ipanema, conforme explica a professora, nasce em Pernambuco e abastece várias cidades de Alagoas. As águas das nascentes chegam a esse curso de forma indireta, através dos riachos próximos das drenagens. Com o Rio Capiá, formam as duas grandes bacias do semiárido alagoano. “O problema é o fato do Ipanema ser temporário, só corre água em período de chuva. Em tempo de seca, vira uma verdadeira estrada, não tem água para nada”, lamenta.

Em outros estados, a exemplo de Minas Gerais, também são realizadas pesquisas de preservação de nascentes em terras particulares, ações consideradas como políticas públicas de proteção à biodiversidade e conservação do meio ambiente. Em muitos casos, os proprietários até recebem uma contrapartida financeira do Estado como forma de incentivo. “Alagoas está longe dessa realidade, infelizmente. O que buscamos mesmo foi conscientizar, sensibilizar. Imagine se a família destrói as nascentes? Essas águas nunca vão chegar lá embaixo para a população da Maravilha”, ressalta.

O maior ganho da pesquisa, sem dúvida, foi a conscientização dos moradores sobre a importância de preservar as nascentes, cuidar da água e promover o reflorestamento, não só para o sustento próprio das 11 famílias, mas para toda região. “O resultado que eu vejo é o cuidado, a atenção maior que eles têm em relação a esse bem tão precioso. A ideia foi absorvida. Eles sabem que a água não é só para eles, que é um bem para um todo”, resume.

Ouros municípios pesquisados e continuidade dos estudos
Os municípios de Água Branca e São José da Tapera também foram contemplados pela pesquisa realizada pela professora Ana Paula. No primeiro, duas nascentes situadas em terrenos particulares tiveram a vazão e a qualidade monitoradas. Já São José da Tapera acabou ficando de fora do estudo, pois não foi encontrada nascente em topo de serra.

Com o título Proposta de recuperação de nascentes nos municípios de Maravilha, Água Branca e São José da Tapera, semiárido de Alagoas, a pesquisa conta com o financiamento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

Para conseguir esse apoio financeiro, o projeto foi submetido ao Edital Universal 2013-2016, concorrendo com iniciativas de todo o Brasil. Na ocasião, o Governo Federal resolveu investir em pesquisas voltadas à questão da preservação de nascentes, por causa dos vários anos de seca prolongada vividos pelo país.

O financiamento do CNPq encerra em agosto deste ano, mas a professora sinaliza para a continuidade das pesquisas. “Não vou parar com a proposta, independentemente de ter recurso. Como já conseguimos capacitar pessoas em Maravilha e iniciamos o reflorestamento, agora é acompanhar o crescimento das mudas, além de reflorestar as outras nascentes. São etapas mais fáceis que necessitam de poucos recursos”, destaca a docente que também é responsável pelo setor de Geologia do Museu de História Natural (MHN) da Ufal.

Além do desejo de continuar, ela também pretende ampliar o campo de pesquisa para outros municípios. “Tenho interesse em trabalhar em Olho d’Água do Casado, por exemplo. Tive informação de áreas com nascentes que hoje não correm mais água, mas no passado deram origem ao nome da cidade. Isso já me deixou curiosa. Eu quero e vou fazer um trabalho lá”, enfatiza.

A pesquisadora aponta a questão financeira como a maior dificuldade para realização das pesquisas, uma vez que há a dependência de orçamento do governo. No entanto, essa realidade não a desanima. “Vou começar como fiz em Maravilha, envolvendo alunos de Pibic e mestrado para fazer os levantamentos até chegar em editais com mais recursos, como os ofertados pelo CNPq”, garante, com muita disposição para continuar o trabalho.

Fonte: Ufal | Thâmara Gonzaga
Imagem: Ufal