Uma descoberta recém-anunciada pode ajudar a mudar a forma como olhamos para doenças autoimunes e entender como e por que células imunes começam a atacar diferentes tecidos no corpo.

“Uma vez que o corpo perde a tolerância a seus próprios tecidos, a reação em cadeia é semelhante a um trem desgovernado”, diz Michael Carroll, do Hospital Infantil de Boston e da Faculdade de Medicina de Harvard (HMS, na sigla em inglês). “A resposta imune contra as proteínas, ou antígenos, do próprio corpo se parece exatamente com a resposta a um patógeno externo.”

Uma equipe liderada por Carroll passou anos pesquisando modelos de camundongos com lúpus para entender melhor os meandros das doenças autoimunes. Suas últimas descobertas, publicadas na revista científica Cell, revelam que células tipo B – células imunes as quais produzem anticorpos e programam o sistema imune para atacar certas antígenos – que perderam a capacidade de diferenciar entre invasores e tecidos do próprio corpo podem desencadear um ataque autoimune. Para piorar, as instruções de direcionamento imune dadas por estas células B podem se ampliar rapidamente para determinar um ataque a muitos mais tipos de tecido dentro do corpo.

Carroll, que é autor sênior no novo estudo, e sua equipe acham que suas descobertas podem finalmente lançar alguma luz sobre um fenômeno biológico conhecido como espalhamento de epítopos, que se dá quando o sistema imune começa a ir atrás de antígenos em partes do corpo aonde, originalmente, não foi instruído a intervir.

A disseminação de epítopos é um aspecto distinto da doença autoimune, pois leva a um ataque imune generalizado contra os próprios tecidos do corpo. A compreensão do que desencadeia isso pode abrir as portas para novas terapias, destinadas a interromper a resposta autoimune em seu curso.

“Existe uma constatação já antiga por parte dos clínicos de que doenças autoimunes evoluem ao longo do tempo, atacando uma gama sempre crescente de órgãos e tecidos – um fenômeno conhecido como ‘espalhamento de epítopos”, diz Søren Degn, principal autor do novo estudo. “Isso se apresenta no paciente como um aumento dos sintomas clínicos, os quais podem incluir dores nas articulações, danos nos rins e erupções cutâneas graves. Porém, até agora, basicamente estivemos no escuro sobre como esse processo ocorre.”

O sistema imune em cores vivas

Para entender o que leva ao espalhamento de epítopos, a equipe de Carroll utilizou a técnica conhecida como “confetes” – apropriadamente chamada assim por sua aparência colorida em imagens – em um modelo de camundongo de doença autoimune comumente conhecida como lúpus.

“Lúpus é conhecido como ‘o grande imitador’, pois a doença pode ter muitas apresentações clínicas diferentes que se assemelham a outras condições comuns”, diz Degn, pesquisador do Hospital Infantil de Boston e professor assistente de biomedicina na Universidade de Aarhus. “É uma doença de múltiplos órgãos com uma infinidade de potenciais alvos antigênicos, tecidos afetados e outros fatores imunológicos envolvidos. O lúpus é considerado uma doença autoimune prototípica, e é por isso que é tão interessante estudá-lo”

Para estudar os camundongos a equipe usou proteínas “marcadoras” fluorescentes para distinguir entre diferentes células B – que, assim como acontece em humanos, são as células que ajudam a disparar uma resposta imune. Quando o corpo detecta um antígeno (uma proteína que é – ou, no caso de doença autoimune, parece ser – externa), as células B se agregam em grupos celulares chamados centros germinais.

“É por isso que, no início de uma gripe ou quando temos a garganta dolorida, os gânglios linfáticos ficam inchados – eles estão se enchendo com centros germinativos para preparar um contra-ataque imune”, diz Cees van der Poel, co-autor do estudo e aluno de pós-doutorado do laboratório de Carroll. “O baço é outro local onde se formam os centros germinativos.”

Nesses centros germinativos, as células B produzem anticorpos concorrentes em resposta ao antígeno detectado, lutando entre si para criar o melhor anticorpo para o trabalho de neutralizar a ameaça invasora. Eventualmente, o melhor clone de célula B com o anticorpo mais eficaz ganha e, juntamente de outras células imunes, ativa um ataque. No entanto, esse processo altamente eficaz pode causar estragos se o corpo detectar incorretamente um “autoantígeno” em um dos seus próprios tipos de tecido.

Usando cores fluorescentes para diferenciar clones de células B, a equipe de Carroll observou a mesma atividade de centro germinal acontecer durante uma resposta autoimune. As “cores” das células B batalharam para criar um autoanticorpo em um modelo de lúpus.

“É realmente seleção natural em um microcosmo”, diz van der Poel. “Uma vez ativadas, há dez cores diferentes possíveis para representar diferentes clones de célula B. Em uma ou duas semanas, a diversidade de cores começa a mudar – eventualmente, uma cor domina, representando que um único clone ganhou.”

Bloqueando o trem desgovernado da doença autoimune

Assim que a resposta autoimune é desencadeada, Carroll diz que “o trem desgovernado sai da estação, por assim dizer”, e o sistema imune começa a ir atrás de outros autoantígenos similares em outros lugares no corpo.

“Com o passar do tempo, as células B as quais inicialmente produzem os autoanticorpos ‘vencedores’ começar a recrutar outras células B para produzir autoanticorpos prejudiciais adicionais – assim como as ondulações se espalham quando um único seixo é jogado na água”, diz Degn.

“Essa descoberta foi uma surpresa e tanto”, diz Carroll, que é um pesquisador sênior no Programa de Medicina Celular e Molecular do Hospital Infantil de Boston e professor de pediatria na HMS. “Isso não apenas nos diz que células B autorreativas estão competindo dentro de centros germinais para projetar um autoanticorpo, mas, então, também vemos que a resposta imune se amplia para atacar outros tecidos no corpo, levando ao espalhamento de epítopos à velocidade de um incêndio.”

Agora, com seu modelo de camundongo de confetes que permite observar a perda de tolerância própria e o espalhamento autorreativo de epítopos, a equipe ainda irá investigar como a complexa dança envolvendo inflamação, morte/remoção natural de células pelo sistema imune e antígenos dentro dos núcleos celulares pode exacerbar a produção de autoanticorpos pelas células B.

Por enquanto, segundo a equipe, entender como a atividade de células B em centros germinais se relaciona com o espalhamento de epítopos é um grande salto na direção certa. Eles especulam que uma terapia que “bloqueia” centros germinais – que agem como a memória em funcionamento do sistema imune – pode, um dia, ser utilizada para deter o ciclo vicioso das doenças autoimunes.

“Bloquear centros germinais no meio de uma resposta autoimune potencialmente pode bloquear o processo de espalhamento do epítopos”, diz Carroll. “Se você pudesse parar o sistema imune adaptativo temporariamente, talvez ele permitisse ao corpo redefinir suas respostas imunes e desligar a autorreatividade.”

 

Fonte: Scientific American Brasil